Um colunista do EXPRESSO chamado Henrique Raposo escreveu umas coisas sobre Justiça há uns tempos. De um modo geral era um conjunto de disparates e lugares comuns pouco interessantes, mas que era importante refutar. Alguém o fez dirigindo uma missiva ao director desse jornal.Não obteve qualquer eco, nem como artigo publicado, nem como carta ao director. Por isso publica-se agora, para que as discussões ,neste país, não sejam objecto do monopólio de alguns:
Dez desmandos sobre a Justiça
Henrique Raposo escreve uma peça de fundo sobre a Justiça no Expresso (28 de Agosto de 2010,pp.14) que tem que ser confrontada com opiniões críticas claras. Esta é uma.
1- Não há uma relação unívoca entre justiça e política e não se pense que os americanos, federalistas ou não, têm uma posição definida sobre o assunto. Os federalistas (referidos por HR) aliás, tinham uma visão pouco democrática da República. Estavam sim preocupados com a liberdade dos seus e certamente não conceberam nenhum sistema democrático articulado com o poder judicial. A força do poder judicial americano derivou duma atitude contínua e constante do Supremo Tribunal chefiado por J. Marshall. No entanto, essa força do judicial é dos temas mais controversos dos EUA e está em contínua mudança e reconstrução.
2- Nem sempre existiu uma relação entre a política e justiça. Umas vezes andam completamente separadas, cada um tratando dos seus assuntos (vide as relações entre governo e tribunais na Inglaterra 1945-1960) outras vezes entram em tensão, sobretudo, quando a justiça começa a intervir em questões políticas, ligadas à actividade dos governos.
3- As modernas (mas não todas) concepções de democracia liberal colocam o poder judicial como um freio à actividade das maiorias democráticas para impedir as tiranias dessas maiorias, que tanto assustavam os filósofos gregos ou os fundadores dos EUA. Nesta concepção (que parece ser a que HR segue) o poder judicial tem um papel político fulcral: o de controlo da actividade dos governos e de defesa das liberdades individuais. É uma teoria muito aceitável (talvez a mais aceitável) mas então tem que se respeitar a liberdade e independência dos juízes e não colocar o tema da legitimidade democrática no meio, o que desvirtuará tal sistema. Se os juízes são controlados pelos partidos políticos através da Assembleia da República, então não os podem controlar e cumprir o seu papel.
4- Em Portugal, o que se está a assistir è à anulação da liberdade e independência dos juízes (infelizmente com a ajudas de muitos deles…). A sua legitimidade deriva da constituição e da capacidade técnica e profissional e não de falsas “democraticidades”. Os juízes não têm que ser controlados democraticamente. Os problemas da magistratura judicial são de outra natureza e ligam-se ao seu “desconhecimento técnico”da Constituição, à falta de cultura generalizada e a uma deficiente formação universitária. Tudo isto ligado a uma certa arrogância preguiçosa que caracteriza as elites portuguesas em Portugal.
5- Os sindicatos de magistrados não devem ser extintos por duas razões: primeiro, o sistema de gestão dos juízes, não é, como deveria ser, de auto-gestão. Pelo contrário, estão incluídos nas carreiras do funcionalismo público e inseridos burocraticamente no Ministério da Justiça. Enquanto assim acontecer, têm direito, como qualquer outro funcionário, a um sindicato. Mas a razão principal nem é essa. A razão principal é que o sindicato é um elemento fundamental para o diálogo público fundamental num sistema livre e democrático. Através do sindicato há um espaço de inter-acção com a opinião pública, os outros elementos do sistema legal e todos os interessados que nunca aconteceria noutras circunstâncias. Todas as discussões se passariam á porta fechada. O sindicato efectivamente produz mais transparência e accountability.
6- Acerca da questão de soberania, não vale a pena argumentar aqui. Apenas referir que a soberania, com a globalização, a União Europeia e a autonomia das regiões, não determina a natureza dos órgãos como na tradicional visão do século XIX.
7- Na questão do PGR o problema é distinto (e deve-se, em definitivo, terminar com esta ideia que as magistraturas são idênticas). O PGR não é mais que um chefe da polícia superior. O Ministério Público foi concebido na Constituição Portuguesa como um corpo relativamente autónomo para evitar instrumentalizações do poder político, mas não deixa de ser um braço do poder político. Dum poder político que se espera cumpra a legalidade. Assim, quanto ao PGR até já há “rodriguinhos” a mais. O sistema actual é mais do que suficiente e transparente. O que tem que se perceber é que o M.P. não é independente, nem livre. Faz o seu papel de chefe da polícia e se as coisas correm mal, o responsável é o ministro da Justiça, nem sequer o PGR.É evidente que processos judiciais que envolvam pessoas com cargos políticos muito importantes (Presidente da República, Primeiro-ministro, etc.) não podem, por definição, ser tratados pelo Ministério Público. Haverá sempre problemas e suspeitas. Talvez uma solução seja a nomeação de um procurador independente com meios próprios (evitando aqui alguns erros cometidos em idêntica solução nos EUA).
8- Finalmente, a questão da falta de escrutínio dos juízes. Há hoje um grande escrutínio dos juízes feito pela comunicação social. Embora muitas vezes errático, criando heróis onde há mediocridade e criticando aquilo que está correctíssimo. Mas, como quer que seja há escrutínio público. Em termos das avaliações internas do Conselho Superior da Magistratura o quadro está mal apresentado. Tem que se saber ler os números e a distinção está entre os Bons, os Bons com Distinção e os Muito Bons. São estes últimos que mais progridem e vão mais longe. Não é verdade que as promoções sejam feitas por antiguidade. A carreira da magistratura judicial é uma pirâmide e só sobem os mais bem classificados. Não chegam todos à Relação e muito menos ao Supremo. Não quer dizer que o sistema seja perfeito, há correcções a fazer, mas não é a aberração apresentada. O problema de alguns magistrados, como se referiu, é a sua impreparação, falta de cultura e falta de formação académica adequada. É muitas vezes confrangedor ler algumas peças processuais com tantos erros de direito. Portanto, a solução é bem mais comezinha: mais formação jurídica, económica e humana.
9- Quanto ao Conselho Superior da Magistratura está-se assistir à sua politização em Portugal. A solução espanhola representa o poder político a controlar quem o devia controlar. E os resultados são péssimos. É verdade que o Presidente da República devia presidir a esse Conselho. Também é verdade que devia ser mais aberto. Mas, certamente os magistrados judiciais deverão ter maioria, caso contrário, perderão (como estão a perder) a independência e liberdade.
10- Do exposto resulta que os 10 mandamentos de HR são 10 desmandos e devem ser claramente refutados.
Dez desmandos sobre a Justiça
Henrique Raposo escreve uma peça de fundo sobre a Justiça no Expresso (28 de Agosto de 2010,pp.14) que tem que ser confrontada com opiniões críticas claras. Esta é uma.
1- Não há uma relação unívoca entre justiça e política e não se pense que os americanos, federalistas ou não, têm uma posição definida sobre o assunto. Os federalistas (referidos por HR) aliás, tinham uma visão pouco democrática da República. Estavam sim preocupados com a liberdade dos seus e certamente não conceberam nenhum sistema democrático articulado com o poder judicial. A força do poder judicial americano derivou duma atitude contínua e constante do Supremo Tribunal chefiado por J. Marshall. No entanto, essa força do judicial é dos temas mais controversos dos EUA e está em contínua mudança e reconstrução.
2- Nem sempre existiu uma relação entre a política e justiça. Umas vezes andam completamente separadas, cada um tratando dos seus assuntos (vide as relações entre governo e tribunais na Inglaterra 1945-1960) outras vezes entram em tensão, sobretudo, quando a justiça começa a intervir em questões políticas, ligadas à actividade dos governos.
3- As modernas (mas não todas) concepções de democracia liberal colocam o poder judicial como um freio à actividade das maiorias democráticas para impedir as tiranias dessas maiorias, que tanto assustavam os filósofos gregos ou os fundadores dos EUA. Nesta concepção (que parece ser a que HR segue) o poder judicial tem um papel político fulcral: o de controlo da actividade dos governos e de defesa das liberdades individuais. É uma teoria muito aceitável (talvez a mais aceitável) mas então tem que se respeitar a liberdade e independência dos juízes e não colocar o tema da legitimidade democrática no meio, o que desvirtuará tal sistema. Se os juízes são controlados pelos partidos políticos através da Assembleia da República, então não os podem controlar e cumprir o seu papel.
4- Em Portugal, o que se está a assistir è à anulação da liberdade e independência dos juízes (infelizmente com a ajudas de muitos deles…). A sua legitimidade deriva da constituição e da capacidade técnica e profissional e não de falsas “democraticidades”. Os juízes não têm que ser controlados democraticamente. Os problemas da magistratura judicial são de outra natureza e ligam-se ao seu “desconhecimento técnico”da Constituição, à falta de cultura generalizada e a uma deficiente formação universitária. Tudo isto ligado a uma certa arrogância preguiçosa que caracteriza as elites portuguesas em Portugal.
5- Os sindicatos de magistrados não devem ser extintos por duas razões: primeiro, o sistema de gestão dos juízes, não é, como deveria ser, de auto-gestão. Pelo contrário, estão incluídos nas carreiras do funcionalismo público e inseridos burocraticamente no Ministério da Justiça. Enquanto assim acontecer, têm direito, como qualquer outro funcionário, a um sindicato. Mas a razão principal nem é essa. A razão principal é que o sindicato é um elemento fundamental para o diálogo público fundamental num sistema livre e democrático. Através do sindicato há um espaço de inter-acção com a opinião pública, os outros elementos do sistema legal e todos os interessados que nunca aconteceria noutras circunstâncias. Todas as discussões se passariam á porta fechada. O sindicato efectivamente produz mais transparência e accountability.
6- Acerca da questão de soberania, não vale a pena argumentar aqui. Apenas referir que a soberania, com a globalização, a União Europeia e a autonomia das regiões, não determina a natureza dos órgãos como na tradicional visão do século XIX.
7- Na questão do PGR o problema é distinto (e deve-se, em definitivo, terminar com esta ideia que as magistraturas são idênticas). O PGR não é mais que um chefe da polícia superior. O Ministério Público foi concebido na Constituição Portuguesa como um corpo relativamente autónomo para evitar instrumentalizações do poder político, mas não deixa de ser um braço do poder político. Dum poder político que se espera cumpra a legalidade. Assim, quanto ao PGR até já há “rodriguinhos” a mais. O sistema actual é mais do que suficiente e transparente. O que tem que se perceber é que o M.P. não é independente, nem livre. Faz o seu papel de chefe da polícia e se as coisas correm mal, o responsável é o ministro da Justiça, nem sequer o PGR.É evidente que processos judiciais que envolvam pessoas com cargos políticos muito importantes (Presidente da República, Primeiro-ministro, etc.) não podem, por definição, ser tratados pelo Ministério Público. Haverá sempre problemas e suspeitas. Talvez uma solução seja a nomeação de um procurador independente com meios próprios (evitando aqui alguns erros cometidos em idêntica solução nos EUA).
8- Finalmente, a questão da falta de escrutínio dos juízes. Há hoje um grande escrutínio dos juízes feito pela comunicação social. Embora muitas vezes errático, criando heróis onde há mediocridade e criticando aquilo que está correctíssimo. Mas, como quer que seja há escrutínio público. Em termos das avaliações internas do Conselho Superior da Magistratura o quadro está mal apresentado. Tem que se saber ler os números e a distinção está entre os Bons, os Bons com Distinção e os Muito Bons. São estes últimos que mais progridem e vão mais longe. Não é verdade que as promoções sejam feitas por antiguidade. A carreira da magistratura judicial é uma pirâmide e só sobem os mais bem classificados. Não chegam todos à Relação e muito menos ao Supremo. Não quer dizer que o sistema seja perfeito, há correcções a fazer, mas não é a aberração apresentada. O problema de alguns magistrados, como se referiu, é a sua impreparação, falta de cultura e falta de formação académica adequada. É muitas vezes confrangedor ler algumas peças processuais com tantos erros de direito. Portanto, a solução é bem mais comezinha: mais formação jurídica, económica e humana.
9- Quanto ao Conselho Superior da Magistratura está-se assistir à sua politização em Portugal. A solução espanhola representa o poder político a controlar quem o devia controlar. E os resultados são péssimos. É verdade que o Presidente da República devia presidir a esse Conselho. Também é verdade que devia ser mais aberto. Mas, certamente os magistrados judiciais deverão ter maioria, caso contrário, perderão (como estão a perder) a independência e liberdade.
10- Do exposto resulta que os 10 mandamentos de HR são 10 desmandos e devem ser claramente refutados.
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